Por Fábio de Oliveira Ribeiro
A morte de Umberto Eco renovou o interesse pela sua obra. Em razão disto resolvi republicar aqui o texto que divulguei em 26/11/2013.
Ao invés de produzir apenas mais uma resenha do livro de Umberto Eco, resolvi tratá-lo como uma obra de arte. Portanto, vou apenas submete-la a uma crítica empregando as mesmas categorias exploradas pelo autor. Assim, caso você esteja interessado numa resenha do livro deverá procurar algo similar em outro endereço.
Na sua INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO, Umberto Eco é bastante sugestivo. Dela decorrem três conclusões fundamentais: 1º toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação; 2º a “obra aberta” não é uma categoria crítica, mas um modelo teórico para tentar explicar a arte contemporânea; 3º qualquer referencial teórico usado para analisar a arte contemporânea não revela suas características estéticas, mas apenas um modo de ser dela segundo seus próprios pressupostos.
Em A POÉTICA DA OBRA ABERTA a intencionalidade é considerada um pressuposto da obra aberta. Além de possibilitar várias interpretações como toda obra de arte, a obra aberta apresenta-se de várias formas e cada uma delas se submete ao julgamento do público. Ao cuidar do exemplo da música o autor não percebeu o abismo sobre seus pés. À medida que um músico cria várias obras deixando ao executante escolher uma das seqüências possíveis e definir a duração dos sons, a própria execução da obra se torna um ato de criação. A obra deixa de ser apenas aberta. Autoria e co-autoria acabam se confundindo de tal maneira que já não se pode falar de uma obra aberta, mas de várias obras produzidas por autores distintos.
O caso da música sempre foi e sempre será limítrofe. Mesmo que a obra não seja aberta diferentes execuções sempre foram possíveis e, de certa maneira, necessárias. A variação na execução é natural porque os homens são diferentes e os músicos estão sempre aperfeiçoando suas técnicas. Além disto, os instrumentos musicais apresentam pequenas variações sonoras segundo os materiais usados e processos de fabricação empregados.
Esta característica da música não existe na literatura. Entretanto, além de se submeter à multiplicidade de interpretação à cada geração de leitores o texto literário esbarra no abismo temporal da linguagem. A cada século o texto assume novas formas e significados em razão lenta e progressiva modificação que se processa na oralidade e, depois, no padrão culto. A fragmentação da narrativa intencional pode ser moderna. Mas não se pode descartar a intencionalidade do autor que escreve para as gerações futuras sabendo que seu texto literário também será sujeito a evolução da linguagem e eventualmente a provocará.
Quais são as chaves para interpretar os textos de Edgar Alan Poe? Seus contos são românticos e absolutamente modernos. Mais que isto, eles são e não são intencionalmente abertos. Poe nunca indicou as chaves de suas obras. Mesmo assim sua literatura foi construída de maneira à se reconstruir de múltiplas maneiras em razão de ser fantástica. Encontramos um fecho para o conceito de obra aberta de Umberto Eco?
Uma das questões mais intrigantes da arte sempre foi a motivação do artista. Vaidade ou necessidade, o ato de criar é sempre uma maneira que o artista encontra de projetar sua personalidade no presente e no futuro. A obra condiciona de certa maneira o tempo, moldando-o às suas imagens. As relações entre arte e memória merecem ser pesquisadas. Os resultados destas pesquisas irão interferir na estética e no conceito de obra aberta.
Umberto Eco sugere que as teorias da relatividade e quântica são responsáveis pelo surgimento da obra aberta. Digamos que ele está certo… Neste caso devemos perguntar: O que será da arte e da obra aberta em razão das teorias do caos? A física do início do século XX desestruturou o mundo apenas porque pretendia o reestruturar de outra maneira. As teorias do caos desestruturam todas as teorias físicas e não estão particularmente interessadas num modelo de estruturação do mundo. Assim, não há dúvidas de que elas desestruturarão a arte de tal maneira que a obra se tornará instantânea e a crítica impossível. Arte e fruição se confundirão de tal maneira que só a contemplação da própria contemplação será possível. Mas esta é uma tradição milenar budista, de maneira que não podemos considerá-la moderna. A orientalização da arte ocidental implicará na destruição da própria arte como a conhecemos?
Nunca é demais frisar que Eco distingue a abertura de toda obra de arte da obra aberta. A obra aberta seria caracterizada pela incorporação intencional da ambigüidade no processo de criação. A obra em movimento é aquela que deixa ao consumidor a possibilidade de escolher dentre as seqüências possíveis. A citação de Pareyson é primorosa, pois coloca claramente como se articulam as relações entre a obra, a crítica e o crítico. Como vimos anteriormente, ao defender que a teoria da relatividade foi responsável pelo surgimento da obra aberta, Umberto Eco nos conduziu à necessidade de questionar os efeitos das teorias do caos sobre a estética. A estética da contemplação estática, que decorre dos efeitos da teoria do caos sobre a arte e a obra aberta, reduzirão as observações judiciosas de Pareyson a palavras vazias. Urge supera-lo.
Ao fazer a ANÁLISE DA LINGUAGEM POÉTICA o autor admite que o conteúdo da mensagem modifica-se segundo o ânimo do receptor. Deve ser por isto que as obras de arte também desaparecem e reaparecem ao longo do tempo. Este modo de ser inconstante e de certa maneira caótica da arte parece não ter despertado maior interessa para o autor. A conseqüência lógica da inconstância da arte é evidente: a modernidade estética da obra aberta é um mito, porque ao reaparecer uma obra nunca reaparece com as mesmas características e pelas mesmas razões que a fizeram merecer reconhecimento no passado. O próprio “reconhecimento passado”, aliás, pode ser um anacronismo, um mito atribuído à obra no presente para realçar sua importância ou conferir erudição e autoridade ao crítico.
O princípio da incerteza é uma categoria literária amplamente estudada por Umberto Eco. Nenhuma novidade, há séculos os leitores foram acostumados aos romances de suspense em que, ao longo da obra, o criminoso é tratado como se fosse alguém inocente ou insuspeito. Segundo o autor, a obra é tão mais aberta quanto maior for sua ambigüidade. Portanto, Machado de Assis antecipou a estética italiana em um século, pois a saga de Capitu e Bentinho e Casmurro é uma das obras mais ambíguas da literatura mundial. Há mais de um século se discute se Capitu traiu Bentinho ou se foi Bentinho que fantasiou a traição de Capitu para justificar o tratamento que deu a ela.
Se seguirmos as pegadas de Umberto Eco nós seremos obrigados a dizer que ambigüidade e abertura são diretamente proporcionais. Quanto menos indicar os responsáveis ou verdadeiros responsáveis pela complicação, mais aberta será a obra. Mas não é isto que ocorre. Afinal, quanto mais a obra deixar ao leitor a função de escolher dentre os finais possíveis menor será a ambigüidade da escolha. Na verdade a fruição estética da própria ambigüidade será a única escolha possível. Dom Casmurro é um exemplo clássico deste fato. Se um meio termo entre informação e ambigüidade é desejável, a estética da obra aberta não passa de uma impossibilidade lógica. No entanto, trata-se de um referencial teórico importante, pois ajuda-nos a compreender melhor as obras seculares do que as modernas. Felizmente a estética nem sempre caminha na mesma direção que a lógica. Um absurdo lógico pode ser esteticamente desejável ou aprazível.
Mas é claro que todo absurdo coloca em cheque o código. E o código é um assunto prestigiado no livro. Umberto Eco afirma que a linguagem é um sistema que se esclarece por si mesmo. Portanto, todas as demais funções da linguagem identificadas por Jackobson seriam acessórias da metalinguagem. Em termos lingüísticos isto quer dizer que a arte seria uma não possibilidade concretizada. A distorção intencional do código não seria reconhecível através da metalinguagem, mas apenas por meio da própria distorção.
Entretanto, um pouco mais adiante o autor italiano assevera que a arte só é possível porque existe um código partilhado por todos. A tradição tende a impedir a ruptura. A ruptura somente seria possível em razão da inexistência de um código socialmente partilhado ou partilhável. À medida que se difunde e adquire reconhecimento, a própria ruptura se torna tradição. Logo, o postulado estético da ruptura constante imposto ao Ocidente pela moderna concepção da obra aberta engessou a produção artística. O amaneiramento é uma conseqüência da estética da inexistência de inovação e de tradição. Mesmo desconsiderando as teorias do caos, Umberto Eco já nos conduziu sem saber à orientalização da arte ocidental. Bem vindos à contemplação estática.
O limite da abertura da obra é dado pela necessidade de comunicação. Mas a língua é um fenômeno em constante mutação. A inovação de hoje será o arcaísmo de amanhã. Não há diferença qualitativa entre a poética medieval e a moderna. A medieval foi moderna no seu tempo. Em alguns séculos, a moderna será considerada tão “medieval” quando a medieval. As sociedades humanas, a arte e a estética padecem basicamente do mesmo problema. Encurraladas entre a tradição e a ruptura sofrem as conseqüências de ambas. A paralisação, o amaneiramento, a contemplação estática budista é a solução sugerida pela estética da obra aberta. Uma excelente não solução na medida em que a tensão é e continuará a ser indispensável ao homem, á arte e à estética.
Num mundo em constante mutação a única estabilidade possível é aquela que decorre do movimento. Já vimos que a abertura intencional da obra, que segundo Umberto Eco é um corolário da arte moderna, conduz à estética da contemplação estática. É bem possível que esta característica budista acabe se refletindo na religião ocidental. Quando isto ocorrer a imutabilidade do movimento constante jogará a última pá de cal sobre os restos de cristianismo que precariamente se sustentam no velho continente. Ficaremos então, enfim, face a face com a negação da negação do fundamento cristão da arte ocidental.
Em A OBRA ABERTA NAS ARTES VISUAIS o autor aborda as relações entre a arte e os outros discursos e retoma sua distinção entre a interpretação não unívoca da obra de arte e a obra aberta. Curiosamente é neste capítulo que Umberto Eco afirma que nossa civilização ainda não admite a vitalidade incondicionada do Zen budismo. Além de não compreender as conseqüências de sua própria estética, ao que parece o autor demonstrou um profundo desconhecimento da tradição oriental. O Zen não nega a arte e a estética, mas apenas o valor temporal atribuído às mesmas. Ao construir uma elaborada mandala com areia colorida, um monge budista não está interessado especificamente na obra ou na sua fruição. Prova disto é que completada a mandala esta é imediatamente destruída. Na verdade o valor da contemplação estática é qualitativamente diferente da fruição estética. A estética da obra aberta conduz a arte ocidental à contemplação budista e, ao mesmo tempo, nega uma característica essencial do próprio budismo, que é a produção artística e estética desinteressada e fadada à destruição iminente.
ENRREDO E CASUALIDADE é um dos capítulos mais incompletos da obra. Ao tratar do roteiro, por exemplo, Umberto Eco se esquece de abordar as características específicas da TV e do cinema que condicionam o trabalho do escritor. As imagens podem reforçar os diálogos ou transforma-los em absurdos em razão do contexto. O silêncio é um poderoso veículo de informação quando associado a imagem. A interação entre literatura e semiótica no texto produzido para TV e cinema é um fato que passou despercebido ao autor.
Ao tratar do programa transmitido em tempo real, o autor defende a tese da limitação da representação especular. Dá a entender, portanto, que existem representações que não são limitadas. Mas ele não esclareceu qual o modo de ser destas. Apenas citou em apoio de sua tese a confusão gerada por um debate entre economistas como se isto fosse uma particularidade da TV. Comunicar algo diverso do que se pretende é possível em qualquer modalidade de comunicação. O ruído é um fato e também pode ser a informação fundamental.
A comunicação televisada não se preocupa com o ruído. Isto ocorre por uma razão desprezada por Umberto Eco: a interação entre o diretor de TV e o público destinatário do discurso é uma ficção. O diretor de um programa em tempo real não pode ter segurança de que sua mensagem está a ser entendida pelo público. A ausência de retorno impossibilita a realização de explicações e correções. Mesmo que estas sejam feitas isto não quer dizer que as televisões estejam ligadas quando os equívocos forem esclarecidos ou sanados. O resultado disto é evidente: as informações e ruídos veiculados pela TV são ou podem ser considerados qualitativamente idênticos.
É por esta razão que a TV é um veículo aberto por excelência. Para tirar o maior proveito possível desta característica é preciso produzir informação e ruído ao mesmo tempo. Não comunicar algo sempre foi um recurso empregado por Silvio Santos e outros apresentadores de programas ao vivo.
Como já vimos anteriormente o autor defende que a intencionalidade é um dos elementos da obra aberta. Ao produzir ruído e informação ao mesmo tempo o apresentador de televisão não tem necessariamente intenção de criar uma obra aberta a várias interpretações. Sua intenção pode ser apenas manter a atenção dos expectadores de maneira a valorizar economicamente os intervalos comerciais. O paradoxo econômico-cultural da TV é evidente. O veículo é aparentemente aberto, mas dificulta a criação artística porque se submete às leis de mercado.
A lingüística gerativo-transformacional postula a existência de uma competência inata para a comunicação verbal. Como a arte também se estrutura como discurso (mesmo quando pretende romper intencionalmente este mesmo discurso) podemos dizer que o homem é dotado de uma competência estética inata. E mais, que a faculdade artística se desenvolve segundo o grau de exposição individual e as características do grupo social a que pertence o individuo. Portanto, a construção de uma obra aberta através da televisão é uma possibilidade futura que não pode ser descartada.
Ao afirmar que a narrativa aristotélica é mais adequada ao programa transmitido ao vivo o livro revela toda a miopia do autor. Ele ignorou as principais características da comunicação televisada: a produção de ruídos e informações com o mesmo valor qualitativo e; as limitações econômicas impostas à produção de arte televisada. A contradição entre estas características e o conceito de mimeses aristotélico é evidente. A verossimilhança tal como concebida por Aristóteles teria que se aplicar às informações e não aos ruídos produzidos pela televisão. Além disto, o conceito aristotélico è restrito à arte e a mola mestra da televisão (que lhe permite produzir ruído como se fosse informação) é a economia.
É curiosa a critica que se faz à leitura do Zen pela geração beat no capítulo ZEN E OCIDENTE. O Zen não é uma proposta estética, mas um caminho para a iluminação espiritual através da contemplação estática. Ginsberg e Kerouac obviamente não pretendiam a iluminação nem a contemplação estática. Os beats queriam apenas renovar a literatura norte-americana e atingiram seus objetivos com o emprego de alguns elementos do Zen. Apesar de almejar a contemplação estática, o Zen tem como característica a produção desinteressada de uma arte instantânea (p.e. a mandala de areia colorida, que é feita para ser destruída). A fruição estética em Ginsberg e Kerouac é um fato. Sua proposta de proporcioná-la através da implosão do discurso artístico que os precedeu também. Mas a ruptura que eles provocaram também se transformou em tradição. Portanto, é possível acusar ambos de terem deturpado a filosofia Zen. Ambos não estavam especificamente comprometidos com a contemplação estática ou com o budismo. Eles foram escritores que recorreram a conceitos místicos para produzir arte e não autêntica iluminação Zen.
Ao comentar Zolla no capítulo DO MODO DE FORMAR COMO COMPROMISSO COM A REALIDADE Umberto Eco sustenta que a poesia nos oferece a possibilidade de reconquistar uma paisagem nova. O mesmo poderia ter dito em relação a apropriação do Zen pena geração beat. Não importa realmente se Ginsberg e Kerouac deformaram o budismo. Desde que o tenham feito para renovar a paisagem da poesia norte-americana sua missão era relevante e foi cumprida.
Segundo o autor “…os objetos, sempre tomando formas menos antropomórficas, nos ajudam a percebe-los como estranhos.” Me parece evidente que quaisquer formas que os objetos assumam, assumirão em face do observador. Como criador e destinatário de todas as formas e conceitos que as definem, o homem relaciona-se sempre de maneira antropomórfica com a arte (mesmo que ela seja abstrata ou hermética). A contradição implícita do termo “antropomórfico” não assustou o autor.
O marxismo foi devidamente sepultado pela história do século XX. A revolução ocorreu num país atrasado e rural, foi fruto de uma rebelião militar e não da organização da classe operária e desaguou numa ditadura brutal. O kzarismo dos primeiros líderes soviéticos enterrou os ideais de igualdade e liberdade do socialismo de Marx. A revolução socialista foi interrompida pelos próprios marxistas e fracassou em todos os sentidos. A internacionalização do socialismo se deu à força e sempre em proveito da Rússia e da China. Mesmo assim, Umberto Eco procurou ajustar sua estética ao conceito de alienação marxista.
A única medida da história e da arte é o homem. Mesmo que as condições de possibilidade de seu relacionamento com o mundo mudem, o homem sempre será o produtor do universo conceitual sobre o qual se debate enquanto produz as condições de sua própria vida. Nesse sentido, a diferença qualitativa entre um machado de pedra e um carro esportivo é apenas a quantidade de tecnologia empregada no fabrico de ambos. Dentro de seu contexto historio cada um destes objetos confere ao seu possuidor status, simboliza poder e pode ser empregado como arma de destruição.
As conclusões estéticas decorrentes do emprego do conceito marxista de alienação são invalidas. Principalmente se aplicarmos a elas os conceitos da própria filosofia de Marx. Afinal, para o economista alemão a arte era um subproduto da economia, uma ideologia a serviço da preservação da hierarquia social. A arte não era vista por Marx como um veículo da alienação, mas como a própria fonte dela.
A inovação é condicionada pela tradição que pretende superar e na qual acaba se diluindo ao concluir seu trabalho de renovar a arte. A função do crítico segundo o autor, seria, portanto, conhecer a primeira e revelar a segunda, apontando as possíveis inadequações formais entre a proposta e a obra. O arcaísmo intencional de uma obra inovadora é uma impossibilidade segundo a estética da contemplação estática preconizada pelo autor. Logo, só um eterno retorno às origens salvará a arte ocidental da sua orientalização. Mas onde estão as origens da cultura ocidental senão no próprio oriente que ajudou a produzir o cristianismo?
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